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O massacre aos monges barbudos

Por Cláudio Lopes

O movimento religioso messiânico conhecido e autodenominado de monges barbudos, ocorreu entre 1935 e 1938 na região rural dos municípios de Soledade e Sobradinho. Seus adeptos foram assassinados pela Brigada Militar, com a colaboração de civis e das elites locais. Os crentes deixavam a barba e cabelo crescerem e andavam descalços. Os convertidos ao movimento construíram um discurso religioso pregando atitudes pacíficas e de valorização da natureza.

Afirmavam que haviam sido eleitos por Deus para um novo destino; por isso, buscavam um modo de vida regrado e dedicado a vivências comunitárias. As orientações eram claras: não matar, não roubar, evitar a “malandragem”, exercer uma reação pacífica, oferecendo “a outra face”. Destacavam a solidariedade, incentivando a dar um prato de comida, um dinheiro, uma oferta ao próximo. Os monges tiveram como inspiração um andarilho identificado como o profeta João Maria.

Com base em práticas mágico-religiosas, foram mobilizados cerca de mil participantes, entre eles pequenos/médios proprietários, ex-escravos e comunidades indígenas.

Já Deca França foi o líder espiritual e curandeiro. Morador de Soledade, estava com quase 50 anos e já tinha dez filhos quando aderiu à “religião” dos monges barbudos em 1935, após ter batido à porta de sua residência o profeta João Maria, onde teria permanecido por 24h. 

A aparição do velhinho maltrapilho convocou o agricultor Deca França para outro destino. Com a conversão, Deca França teria começado a dar “passes”, a dar “remédio” para a confirmação e a curar com ervas. Tornou-se curandeiro e estabeleceu processos curativos que envolviam a hospedagem dos doentes em sua casa. Embora vários se identificassem com a religião Católica Apostólica Romana, os “passes” de Deca França provocavam fortes reações, como a situação de uma mulher que teria “vomitado cabelos”.

Outro líder foi Tácio Fiúza, que teve sua conversão associada à cura de sua esposa, Ana Gonçalves, realizada por Deca França. Ela estava enferma de uma grave doença. Tácio tornou-se, a partir daquele momento, o pregador e o mobilizador da nova crença e vários membros da família da esposa tornaram-se adeptos desde então.

Em 1938, João Maria teria estado na casa de Tácio Fiúza para orientar os fiéis para a Semana Santa, semana esta que teria fins trágicos.

O início dos assassinatos

Após o golpe de 10 de novembro de 1937 e a instituição do Estado Novo, passou-se a falar na região que os monges barbudos eram perigosos comunistas, boato possivelmente difundido pelos inimigos dos adeptos da nova religião, entre eles os bodegueiros.

Outro boato absurdo é que sugeriram um vínculo entre eles e o ex-governador do estado, general Flores da Cunha, então exilado no Uruguai devido à oposição com Getúlio Vargas. As investigações policiais começaram alguns meses antes das investidas da Semana Santa de 1938.

As delegacias de polícia já haviam identificado e apreendido para averiguação diversas pessoas. Foram encontrados registros de nove presos antes dos cercos de abril de 1938.Com a aproximação da Semana Santa, os crentes abandonaram suas moradias, dirigindo-se à vila de Bela Vista para festejar Santa Catarina, padroeira da capela da pequena vila.

A longa procissão de centenas de penitentes, dois a dois, percorreu vagarosamente a precária estrada que levava a ela, cantando e rezando as arrastadas ladainhas. Enquanto os crentes rezavam pelas estradas, espalhou-se a versão de que os romeiros assaltariam as bodegas da Bela Vista.  

No dia 13, os habitantes da vila assistiram, assustados, à chegada dos crentes, portando consigo filhos. As estimativas variam em quinhentos e cinco mil fiéis, esta última certamente superdimensionada.

À noite, os três comerciantes locais encerraram-se, com capangas armados, na venda de João Paulo Trevisan, diante da capela, dispostos a defender com as vidas as propriedades, à espera do assalto que creram ser inevitável, enquanto os crentes, armados apenas de seus rosários e imagens de santos, oravam impassíveis.

Pouco antes das oito horas do dia 14, o delegado Antônio Pedro Pontes , quinze brigadianos e um número indeterminado de subdelegados, comerciantes e civis chegaram de caminhão de Sobradinho.

A tropa postou-se a mil metros da capela, num morro próximo, de onde, em absoluta segurança, passou a disparar, por duas horas, sem intimação, sobre os crentes. As estimativas variam entre quatro e oito mortos, além de dezenas de feridos, todos transportados pelos fiéis, que fugiram, desordenadamente, pelos caminhos e matos da região, por onde ainda chegavam penitentes para o encontro.

Tácio Fiúza, que permanecera na capela, foi espancado e baleado duas vezes. Ferido mortalmente, perdeu-se no mato ajudado por companheiros de credo. Outra vítima foi Catarina Vital e seu filho bebê de 20 dias, morto em seus braços – sim, balearam um BEBÊ no colo de sua mãe. Ela por sua vez foi atingida no braço.

Ainda no dia 14, o corpo de Tácio foi transportado por seis crentes, para a região do Jacuizinho. Durante o dia 15, mais de mil pessoas acorreram para assistir ao velório e, segundo parece, à ressurreição do líder religioso. Finalmente, na manhã da sexta-feira santa, 16 de abril, Tácio Fiúza foi enterrado para que ressuscitasse “para baixo”, já que não o fizera para cima!

Na madrugada do 17, quando parte dos beatos dormia, à espera que o fim da forte chuva permitisse o retorno às suas moradias, a residência onde se realizara o velório do líder finado foi cercada por tropas militares, que, mais uma vez, dispararam, sobre os fiéis desarmados, causando um número desconhecido de mortos e feridos. Mais de cem fiéis foram feito prisioneiros.

A seguir, uns vinte monges, selecionados como líderes do movimento, foram enviados para Porto Alegre e Cachoeira do Sul, para serem devidamente fichados, interrogados, torturados, barbeados e soltos. Dois dos monges, após terem as cabeças raspadas, ficaram cegos devido ao veneno derramado sobre elas.

Em 20 de abril, o interventor Cordeiro de Farias enviou para a região o capitão José Rodrigues da Silva , no mando de forte destacamento militar, para dar caça aos membros já dispersos do grupo religioso. Durante semanas, piquetes de cinco soldados, em geral orientados por prestativos comerciantes, vasculharam a região, cercaram e assaltaram casas, submetendo crentes e não crentes a duras humilhações e violências.

As barbas e os cabelos longos foram proibidos, já que significava sinal de santidade e de fidelidade à nova religião.

Em 12 de maio, o aspirante da Brigada Militar, Wandenkolk de Freitas Marques, se fizera passar por 350 crente, para melhor reprimir os fiéis, ordenou que tropas disparassem, mais uma vez, sobre uma pobre residência, onde monges barbudos, desarmados, reuniam-se para rezar. Ao final do fuzilamento, contaram-se dezesseis mortos.

Em 13 de junho, a jovem Andreza Gonçalves, tida como corporificação de Santa Terezinha, foi estuprada em sua residência por vários soldados; um cabo chegou a afirmar querer  “ver se a santinha era realmente virgem”.

Por quatro meses, acompanhado por alguns seguidores, Deca França permaneceu escondido nos matos da região. Finalmente, cansado e acuado, foi fuzilado em 15 de agosto, ao se entregar às tropas policiais.

A partir de então, alguns poucos monges, isolados e anatematizados, continuaram seguindo os ensinamentos dos “profetas” domesticamente, amargurando a repressão sem piedade da qual jamais alcançaram a compreensão das razões.

Após o massacre, os Barbudos perderam terras.Um dos netos de Alípio Costa, barbudo torturado pela polícia, Lori conta em uma entrevista ao site Estadão que a família plantava fumo e criava ovelhas. “eram gente bem de vida. Diziam que os Barbudos eram bandidos e comunistas. Bandidos foram eles que saquearam tudo, levando 180 pelegos (pele para montaria)  e joias das gurias”. Conta ainda que mantém a doutrina do avô: “é uma história linda”.

Até hoje, o governo rio-grandense não pediu desculpas aos monges e aos seus descendentes pelo massacre e perseguição a que foram submetidos.

Fonte: Movimento dos Monges Barbudos

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